Um espectro literalmente assombra a Casa Branca. Ele vem do Sul profundo dos Estados Unidos, mais precisamente do estado do Alabama. Trump e a extrema direita republicana sofreram uma derrota imprevista nesta cidadela da direita branca e masculina, quando o democrata Doug Jones suplantou o republicano Roy Moore, no voto popular e no voto distrital.
São várias as razões que transformaram essas eleições para o senado, geralmente sem grande repercussão, em um infortúnio nacional para os republicanos. Moore foi ostensivamente apoiado por Trump. Ambos, vale lembrar, são acusados de assédio sexual. Jones é o extremo oposto de Moore. O republicano derrotado defendia, entre outros absurdos, a anulação da emenda constitucional que proibiu a escravidão. Jones foi promotor e atuou contra membros da confraria racista Ku Klux Klan, ou KKK. Em Birmingham, área rica e branca onde a cruz em chamas da KKK aparecia em conluio com a polícia e a política, nos anos 1920’s e nos anos 1960’s, principalmente, Moore foi massacrado. A outra razão é que esta eleição parece confirmar que a atitude racista de Trump e sua ala republicana provocaram um renascimento do movimento negro e de organizações de base que defendem os direitos civis. A maioria das análises mostra não apenas a importância do voto negro e do voto feminino em geral, para a derrota de Moore, mas a forte mobilização de movimentos sociais, em todo o país, para mobilizar os eleitores contra ele. O voto foi mais contra Moore, do que a favor de Jones.
Mesmo nos subúrbios afluentes do Alabama, a rejeição a Moore foi forte. Como no condado de Jefferson, de população majoritariamente branca, que abriga Birmingham e vários bolsões de riqueza, onde o democrata obteve mais de 68% do voto. Nos redutos férreos dos republicanos, o voto ficou dividido praticamente meio a meio. Os eleitores negros compareceram em massa às urnas nas áreas mais urbanizadas do Alabama e nas áreas rurais de população negra. A vitória de Jones foi avassaladora nos 20 vinte condados de maioria afroamericana, especialmente nos pontos icônicos da história do movimento negro, como Montgomery e o condado de Dallas, berço de Selma, palco da grande marcha liderada por Martin Luther King.
Não parece ter sido um evento isolado e fortuito. No mês passado, nas eleições estaduais da Virgínia e Nova Jersey, o grande comparecimento de afroamericanos às urnas alicerçou várias vitórias democratas. O desempenho dos republicanos nessas eleições, mesmo nos subúrbios de classe alta e média, foi inferior ao normal. As próximas eleições ocorrerão em estados muito menos republicanos. A popularidade de Trump continua firme no negativo, o que contribui muito para esses estragos nos redutos habitualmente controlados pelo partido, o GOP. Mas o fator principal desse movimento pró-Democrata é a percepção de risco e perda causada pelos retrocessos impostos por Trump no campo dos direitos civis, principalmente dos cidadãos não-brancos e das mulheres.
Os democratas já perceberam a onda que está se formando. Nem precisam se dedicar a atacar os republicanos. O caminho é mobilizar sua base tradicional de apoio. Capitalizar esse sentimento de perigo e danos que levanta os negros, latinos e mulheres nos Estados Unidos, depois da brutal reviravolta com a substituição de Barack Obama por Donald Trump. A estratégia que tem dado certo é a mobilização de base, popular, “grass roots”, usando redes e informações hiperlocais, estimulando o eleitorado e garimpando voto de bairro em bairro. Especialmente no Sul, o eleitorado negro está particularmente sensível, por sentir o peso do retrocesso e do aumento da intolerância, que sempre houve, é uma patologia social endêmica naquela região. Em todo o país, todavia, as pessoas de pele escura e as mulheres estão conscientes de que só com mobilização e luta afastarão a ameaça supremacista branca e machista. Há uma onda democrata em formação e ela pode, além de animar os eleitores, revelar novas lideranças. Ganha o Partido Democrata, mas ganha, também, a democracia representativa, que se aproxima mais dos cidadãos por meio dessa mobilização pela raiz.
Publicado originalmente no Blog do Matheus Leitão — G1: https://g1.globo.com/politica/blog/matheus-leitao/post/2017/12/17/o-espectro-de-alabama.ghtml