No mesmo momento em que as delegações da Rússia e da Ucrânia se encontravam em Belarus para negociar, as forças russas continuavam o bombardeio e o avanço das tropas. Embora não tenham assumido o controle de nenhuma cidade importante, as tropas russas estão cercando as principais delas e aumentam a violência dos ataques. É bem provável que Putin tenha ajustado a estratégia de ação militar à surpresa com a capacidade de resistência ucraniana. Neste caso, teria substituído a estratégia de ocupação imediata por uma estratégia de controle do espaço aéreo e cerco das principais cidades, com bombardeios sistemáticos que buscam enfraquecer física, militar e psicologicamente população e governo.
Esta estratégia, porém, torna a Rússia mais vulnerável às sanções econômicas do Ocidente. A estratégia de cercamento é mais demorada e mais custosa. E Putin não tem tempo. Se demorar a resolver o que iniciou, será asfixiado financeiramente, perderá apoio doméstico e terá que desistir. Por isso, é provável que recrudesça os ataques nas próximas 48 horas.
É impossível saber qual o plano final de Putin. Ele tem mentalidade impulsiva e é capaz de adotar uma estratégia do tipo tudo ou nada, sem medir riscos, custos e consequências de toda natureza. Volto a dizer, Putin não tem barreiras morais, nem éticas. Não tem empatia. É um autocrata, autoconfiante e autocentrado. Falar em isolamento de Putin é quase o mesmo que falar na sua opção de vida e política. Ele sempre se isolou, tem um grupo diminuto de auxiliares que ouve, entre eles alguns dos oligarcas agora atingidos pelas sanções ocidentais. Tem uma mente inflexível, cabeça-dura, constrói sua própria versão da realidade. Como Trump e Bolsonaro. Daí, talvez, a admiração recíproca. Sob pressão, o mais provável é que escale a agressão a um ponto indesejável por toda a humanidade.
A situação da Ucrânia continua desesperadora. A ajuda militar em equipamentos de guerra, armas e munições vai com o alerta de que os ucranianos estão por conta própria. O Ocidente dará armamento, dinheiro, abrigo aos refugiados, mas não mandará tropas para compensar o desequilíbrio de potência militar entre o invasor e o invadido.
Estamos vivendo uma situação sem precedentes. A invasão por uma potência nuclear de um grande país na Europa esteve equivocadamente fora dos cenários de risco dos governos ocidentais. As sanções adotadas contra a agressão russa também quebraram padrões, tanto por sua radicalidade, quanto pelo grau e rapidez do consenso construído entre a União Europeia, o Reino Unido e os Estados Unidos. A Alemanha investe em segurança militar e envia armas à Ucrânia. Quebrou um dogma pelo desarmamento, cristalizado no após Segunda Guerra. A Suiça quebrou pela primeira vez sua neutralidade e as garantias de seu sistema bancário, aderindo às sanções financeiras. As nações da Escandinávia também romperam com sua neutralidade. Ninguém tem informações e recursos de controle suficientes para lidar com ineditismos. É uma situação de ensaio e erro.
Rússia e Ocidente moveram-se para um novo impasse. O Ocidente espera que o isolamento financeiro e econômico radical da Rússia a debilite rapidamente, impedindo-a de financiar a guerra e gerando uma crise interna suficientemente aguda que retire o apoio da oligarquia econômica e do povo a Putin. Putin aposta em sua capacidade de aprisionar o povo ucraniano e derrubar seu governo, antes que as sanções paralisem a economia russa. Desta forma, criaria uma situação humanitária insustentável, que forçaria o Ocidente a negociar os termos da libertação da Ucrânia. Ao mesmo tempo, o temor de uma escalada nuclear do conflito já está na pauta de riscos das autoridades ocidentais e traça uma linha que não pode ser ultrapassada.
Em síntese, Rússia e Ocidente estão escalando. A unidade do Ocidente em torno das sanções e a radicalidade inédita das medidas de isolamento russo parecem gerar a confiança de que será vitorioso. É provável, mas no médio para o longo prazo. Putin sabe que a Ucrânia não tem condições de derrotar suas tropas. Deve escalar o ataque. Com esta atitude de parte a parte, a guerra não tem solução. O impasse leva a um desastre impensável. A única saída é o Ocidente deixar claro que as sanções são uma forma de pressão forte, para forçar a Rússia a negociar. Se o Ocidente não criar condições de uma saída negociada, o cenário para a guerra é catastrófico e aumenta o risco para além do que se imaginou possível no século XXI.
O ataque brutal à Ucrânia, independente do seu desfecho, marca um ponto de virada na arquitetura global, que vive um momento de desequilíbrios sucessivos por causa das vertiginosas mudanças estruturais em curso com a globalização, a revolução digital e científica. A obsolescência das instituições criadas no após-guerra para assegurar a paz e garantir a estabilidade ficou evidente. Essas instituições vinham desmoronando há muito tempo, desde talvez o fim do sistema de Bretton Woods, no final da década de 1970, início da de 1980. A ONU e seu Conselho de Segurança, que já davam sinais repetidos de inocuidade, estão completamente desmoralizados.
A ordem global já não é a mesma hoje e será muito diferente amanhã. Abriu-se uma vereda rumo a um novo padrão para a globalização. O esgotamento deste ciclo da globalização já havia ficado claro com a disrupção de cadeias de suprimento no desastre nuclear de Fukushima e, mais gravemente, com o fechamento das atividades econômicas na pandemia. Agora, a criação de um eixo China-Rússia, que as sanções ocidentais tendem a fortalecer, é mais uma clareira à frente nesta vereda. A Rússia precisa da China desesperadamente e a China só tem a ganhar porque se beneficia com a parceria, reforça a ideia de respeito às regiões de influência, e não perde nas suas relações econômicas com o Ocidente.
O fim da "Pax Americana" — o equilíbrio global mantido por uma potência hegemônica, após o colapso da União Soviética — deixou a multipolaridade como única possibilidade para o necessário equilíbrio político entre as nações, no contexto da globalização econômico-financeira e da sociedade digital cosmopolitizada. Mas, a multipolaridade exige realismo e tolerância de todas as partes. Ela requer o reconhecimento por todas as potências das zonas de influência de cada uma. Exige que cada uma delas cuide de manter a estabilidade nos países de sua área e conter agressões a países das outras áreas de influência. Requer, também, o fortalecimento de potências intermediárias em cada uma das regiões, para auxiliar a potência dominante, portanto uma rede de relações de dependência. É um arranjo mais instável e mais conflituoso.
Se o Ocidente não oferecer uma opção clara de saída negociada a Putin, a escalada da guerra me parece inevitável e pode haver um genocídio na Ucrânia. A China está se oferecendo para mediar essa negociação. É de seu interesse. Projeta-se como potência diplomática global se tiver sucesso. Se o Ocidente recusar, será uma grande insensatez. A Rússia depende da China no momento e Putin não teria como recusar. Estamos diante de um rascunho da nova ordem global, que pode se tornar o desenho real muito em breve.
Do ponto de vista moral, da justiça, da liberdade e da autonomia dos povos, nem a hegemonia anterior, nem a multipolaridade são arranjos desejáveis. A alternativa à qual me alinho, o cosmopolitanismo, é ainda utópica, dado que não tem condições reais ainda de consolidação. Implicaria o abandono dos nacionalismos e uma radical redefinição da ideia de estado-nação. Na transição que vivemos, o único arranjo viável é um equilíbrio multipolar, ao qual os EUA resistem.