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O Brasil que não temos

Eu havia acabado de ler o artigo de minha querida amiga Flávia Oliveira no Globo,  como sempre no ponto e contundente. Flávia falava da evidente resistência da hegemonia masculina e branca a murchar as expectativas de que o terceiro governo Lula teria um ministério plural e diverso. Mas, pelo menos, que fosse representrativo da maioria que o elegeu. Nela predominavam as mulheres e os negros, como em nossa população. Entrei no WhatsApp para ver as mensagens e, no grupo Literatura e Liberdade, do escritor Afonso Borges, Itamar Vieira Junior expressava esta mesma frustração de expectativas criadas pelas promessas de Lula.

Na troca de mensagens, Itamar, em uma das mensagens, mencionou a África do Sul. Ele já havia comentado comigo sobre o apartheid e o regime pós-Mandela, a propósito do ótimo romance A promessa, de Damon Galgut, numa conversa sobre meu romance O intérprete de borboletas, mediada pelo Afonso Borges . José Eduardo Agualusa, que também está no grupo, lembrou que os defensores do apartheid, na época, sempre usavam o Brasil para perguntar porque só criticavam a eles, se aqui era igual. Afinal, o Brasil,além de discriminar os negros, tem ou teve, também segregacionismo?

Flávia, Itamar e Agualusa mexeram com minha caixa de memórias e lá fui eu projetado no espaço-tempo para os anos de 1960, quando morava em Brasília. Em agosto de 1966, eu estava envolvido com uma monografia de história política para o segundo ano do então colegial — hoje segundo ano do ensino médio. Era foca no jornal Última Hora, falava inglês e sabia de um seminário promovido pela divisão de Direitos Humanos das Nações Unidas sobre o apartheid em Brasília. Propus ao professor que fosse meu tema. Ele aceitou, alertando-me que seria muito difícil porque eu não encontraria material para pesquisar. Respondi que basearia a maior parte do trabalho em entrevistas com participantes do seminário.

Na biblioteca da UnB, havia três ou quatro livros sobre o apartheid. Daria para saber o básico e fazer perguntas minimamente aceitáveis, se conseguisse entrevistar alguém. Tive sorte. Obtive acesso ao seminário e fiz sete ou oito entrevistas. Todo o material se perdeu numa enchente que destruiu meus livros e documentos guardados num depósito. Retive na memória apenas um jovem jornalista de 30 anos, que vivia no exílio em Londres, chamado Lewis Nkosi. Ele morreu em 2010, aos 74 anos, consagrado como jornalista, poeta, romancista e ensaísta de primeira grandeza. Deu-me a mais longa entrevista e nos encontramos várias vezes durante as duas semanas do seminário. Lewis me ajudou muito e chegamos a nos corresponder por algum tempo. Em todas as entrevistas, os militantes antiapartheid falaram de seu desconforto com a ausência de negros em todos os lugares que visitaram no Brasil.

Os anos se passaram, virei sociólogo por uma volta do destino, e continuei a me preocupar com a invisibilidade do negro no Brasil. Ouvi muitas afirmações do tipo, “temos racismo, mas não temos conflito racial”, ou “temos discriminação, mas nunca segregamos”, ou ainda “nossa desigualdade é social, não racial”. Claro, nunca tivemos um regime estatal fundado na segregação, como na África do Sul. Nem uma segregação legislada, como nos Estados Unidos, onde a placa “no blacks” interditava o uso de banheiros em locais públicos e separava os assentos nos ônibus. Nossas Rosa Parks tiveram que combater uma segregação dissimulada.

Como devemos classificar situações como essas que amigas e conhecidas viveram? A amiga atriz negra que foi visitar uma colega branca, em Ipanema, e o porteiro pediu que por favor usasse o elevador de serviço. A gerente brasileira graduada de um banco estrangeiro que foi fazer visita profissional a um cliente no Leblon e foi encaminhada para o elevador de serviço. A amiga jornalista que também foi “convidada” a usar o elevador de serviço em um prédio também no Leblon. Nenhuma delas aceitou o redirecionamento segregacionista e que as rebaixava a serviçais. Mas só puderam entrar pelo “elevador social” na companhia da pessoa que visitavam.

Ah, as palavras. Nunca são usadas gratuitamente. “Elevador social” é tão revelador, perdoem a aliteração. É preciso “ascender” racialmente, para usá-lo. Como é revelador o “pelo menos”, em algumas mensagens do grupo. Ou as justificativas que leio nos jornais atribuídas ao presidencialismo de coalizão. É tão evidente que os politicos brasileiros, mesmo os progressistas, não vislumbram um mundo plural e diverso. Se depender deles, os negros, as mulheres e os indígenas ficarão restritos às cotas, ou pior, à sobras nos nichos menores do poder. Isto nada tem a ver com a dinâmica do presidencialismo de coalizão, posso assegurar.

Há ou não segregação educacional? Por que as crianças negras estão, quase todas, nas escolas públicas e as brancas nas escolas privadas? E o que dizer de segregação ocupacional? Habitacional? E a segregação policial, que encurrala os negros na fila dos “suspeitos usuais” e fuzila em massa os jovens negros brasileiros? A mentalidade hegemônica naturaliza a negação dessa realidade que impede o Brasil de ser uma Nação íntegra e nos condena a ser um país partido.

Aos trinta anos de idade, Lewis parece nunca ter suspeitado de que seu exílio se estenderia por mais tempo do que ele tinha de vida. Foram 40 anos impedido de voltar à sua terra. Ele só voltaria à África do Sul em 2001. Era Zulu, nascido em Embo, KwaZulu-Natal, estudou e começou a carreira jornalística em Durban. Quando nos conhecemos era o editor literário da The New African e tinha um programa de entrevistas com escritores africanos, acho que na BBC de Londres. Quando estive em Durban, caminhei emocionado pela cidade na qual Lewis me contou ter começado no jornalismo. Ao pisar em Johannesburgo, pela primeira vez, foi nele que pensei. Eu o admirava desde a minha primeira juventude. Ele foi o primeiro negro a me ajudar a entender o ininteligível para um homem branco brasileiro, o que é ser discriminado e segregado.