O Brasil está atrasado na preparação para o momento em que atingirmos o patamar de infecção em massa pelo Sars-Cov-2 e de internação de pacientes com formas mais graves da Covid-19. O presidente Bolsonaro, em atitude irresponsável, não apenas minimizou a gravidade do surto epidêmico, para ele uma histeria, mas criou um duplo risco ao incentivar seus seguidores mais fiéis a irem às ruas. Por que duplo? Por que podem ser contaminados ao se aglomerarem e podem, uma vez infectados, contaminar outras pessoas.
O país está atrasado porque o presidente faz com o surto, o mesmo que tem feito com as reformas apresentadas ao Legislaativo. Ele opera para minimizar urgências, aguar medidas, preocupado apenas com os interesses de seu pequeno núcleo tradicional de apoio. Ao depreciar os esforços do ministério da Saúde, com o apoio também irresponsável do diretor-presidente da Anvisa, o contra-almirante Antonio Barra Torres, desarma o ministro da Saúde e compromete todo o esforço que tem sido feito e que está na direção correta e em linha com as recomendações da OMS. O mau exemplo presidencial é muito pernicioso, porque induz comportamentos que põem em risco não apenas seus seguidores, mas toda a população. A equipe econômica não foi mobilizada para operar na frente de combate à epidemia. Sem o impulso da liderança presidencial, não se toma todas as medidas cautelares necessárias à mitigação do inevitável surto epidêmico e de preparação do sistema nacional de saúde para atender aos portadores da Covid-19 na sua forma mais grave.
O paralelo com o presidente Donald Trump é inevitável, porque Bolsonaro mimetiza muitas das atitudes de seu colega americano. Trump também começou por negar a importância do surto. Mas, ao contrário de Bolsonaro, ouviu os alertas das autoridades sanitárias de seu governo e mudou de atitude. Os Estados Unidos têm uma agência de ponta, o CDC (Centers for Disease Control) para tratamento de epidemias, até por uma questão de segurança nacional, por causa do risco de ataques químicos e biológicos. É parte do Departamento de Saúde, o equivalente ao nosso ministério, mas é considerado um recurso do sistema de segurança. Desobedecer às recomendações do CDC deixaria Trump em situação politicamente vulnerável. Ontem (16/3), ele anunciou medidas sérias iniciais para enfrentar o surto. Fez uma reunião séria e serena com todos os governadores, para acertarem uma estratégia comum e bipartidária de ataque à epidemia e para oferecer os recursos federais em apoio aos esforços estaduais e municipais. O governo federal está investindo na compra de máscaras e respiradores, na identificação de prédios de podem rapidamente ser convertidos em UTIs. Vai adotar a estratégia de testes em massa, inclusive em drive-throughs, para que as pessoas não precisem descer dos carros. Maior número de pessoas testadas parece ter ajudado à Coreia do Sul a minimizar os óbitos. Trump deu uma coletiva de imprensa objetiva, franca e serena, respondendo às perguntas dos jornalistas, na sala de imprensa da Casa Branca, sem claques e sem ofensas ou interdições.
Com a mudança de atitude de Trump, o Brasil ficou isolado como o único país grande do mundo a ter um governante displicente com os perigos associados à pandemia global. Isto nos custará caro internamente e terá consequências negativas no campo geopolítico. Bolsonaro cometeu crime de responsabilidade ao ferir o decoro do cargo, desrespeitar recomendações relativas à emergência sanitária e incentivar ataques aos Poderes constituídos da República.
O Brasil é muito vulnerável e suas fragilidades são potencializadas pela atitude imprópria e insensata do presidente. Há três componentes no enfrentamento da crise que, infelizmente, dependem do Governo Federal. O primeiro, diz respeito ao financiamento adequado do SUS e de ações de emergência para ampliar a disponibilidade de leitos hospitalares equipados com respiradores e expandir a capacidade de atendimento pré-hospitalar, ambulatorial, permitindo triagem efetiva para identificar os casos de internação. Este atendimento permitiria evitar o fluxo imanejável de pacientes aos hospitais já sobrecarregados. Além disso seria urgente investir no atendimento das populações que vivem em favelas e outras comunidades de urbanização precária, nas quais o isolamento social é impraticável. A preparação do sistema de saúde e a incorporação da rede privada ao esforço de assistência médica coletiva custam dinheiro e a única fonte é o Tesouro Federal.
O segundo componente é de proteção social. É preciso ampliar rapidamente, por meio do bolsa família e outros programas sociais, a rede de proteção social para apoiar as famílias durante o período de isolamento social, os desprotegidos e os desempregados. Trata-se de mitigar os efeitos sociais negativos combinados das medidas de contenção da epidemia e da inevitável recessão.
O terceiro é o componente de ação antirecessiva ampliando o gasto em áreas que tenham impacto no curto prazo e que auxiliem no enfrentamento da epidemia de Covid-19. A ideia de que as reformas dão conta disso é falsa e cruel. Quando e se começarem a dar resultados, o país já terá sofrido todas as consequências da epidemia e da recessão. Ou seja, o que se precisa é de gasto social e investimentos de curto prazo, com efeitos imediatos. Investimentos desburocratizados em obras e equipamentos para pôr em operação hospitais e postos de saúde já construídos, que esperam, às vezes há anos, por acabamentos, pessoal e equipamentos para serem abertos e construção ultrarápida de novos postos de saúde, ambulatórios e hospitais. É claro que todo o gasto de emergência deve ser responsável e efetivo. Mas, como disse Armínio Fraga a Míriam Leitão em entrevista para a GloboNews, a própria lei de responsabilidade fiscal e a que instituiu o teto de gastos preveem ampliar o gasto em situações de calamidade.
A esperança do Brasil, hoje, está com governadores e prefeitos, sobretudo das metrópoles, que estão levando a sério a ameaça do coronavírus e adotando medidas de precaução. Mas, elas ainda estão aquém do necessário. Dos prefeitos das maiores cidades, o único que permanece omisso, como sempre foi, é o do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella.
Vivemos uma séria crise política, com um presidente despreparado e desqualificado para o exercício da Presidência, que fere o decoro e desobedece à Constituição de forma serial, em confronto permanente com o Poder Legislativo. Estamos no início do que pode ser a mais séria crise epidêmica da história, desde o surto de Aids nos anos 1980. Estas duas crises contratam uma recessão que pegará o país já no contrapé, após ter experimentado a pior recessão de sua história, seguida de taxas muito baixas de crescimento que mantiveram o desemprego no elevado patamar de 11%.
Há evidentes riscos à democracia, porque o agravamento das condiçoes sociais e de saúde reduzirão ainda mais a popularidade do presidente e a confiança da população no Chefe do Executivo. A tendência de Bolsonaro será de responder de forma autoritária, a partir de uma narrativa conspiratória, que já começa a construir, de que querem isolá-lo para lhe dar um golpe. As instituições democráticas, de freios e contrapesos, estão sendo duramente testadas. Caberá a elas enfrentar o surto autoritário cujo epicentro é o Palácio do Planalto.