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Mil dias de desassossego

  • Categoria do post:Política

Foram mil dias de desassossego. Como disse Bolsonaro, embora com outras intenções é preciso dizer, nada é tão ruim, que não possa piorar. A frase pode ser tomada como a síntese de um governo agressivo, ofensivo, desrespeitoso das pessoas e das leis.

Bolsonaro transformou o ministério da Educação num depósito de nulidades. Eles paralisaram e distorceram o processo de avanço educacional, desorganizaram os planos e a avaliação da pós-graduação e deixaram as universidades à míngua. Atrapalharam os processos de avaliação e deixaram o sistema educacional nacional desorientado.

O desgoverno desarrumou todo o arcabouço de promoção da ciência e do desenvolvimento tecnológico, no momento mesmo em que estamos em plena era do conhecimento. Atrasou irremediavelmente a entrada do país no 5G, em plena era da sociedade digital. Como resultado, não poderemos participar como agentes ativos do amplo processo de inovação que o 5G vai deflagrar.

Na pandemia, Bolsonaro estimulou o negacionismo e a mentira, prescreveu tratamentos que a ciência diz que são ineficazes e perigosos, sabotou o quanto pôde o acesso à vacina, deixou os testes de Covid mofarem nos porões do ministério. Defendeu a criminosa imunidade de rebanho como forma de conter a doença, primeiro ostensivamente, depois, sob ameaça da Justiça, veladamente. Recusou-se a assumir a responsabilidade da União definida pela Constituição Federal, deixando o país sem coordenação no enfrentamento da pior pandemia da história. Bolsonaro abriu frentes de conflito com estados e municípios, em lugar de patrocinar ações solidárias em favor da saúde coletiva.

Sob seu comando, o governo desorganizou a economia, por erros e omissões, em parte por incompetência da política econômica, em parte por sua desastrosa gestão da saúde na pandemia. Apesar de ter o apoio do mercado financeiro, gerou incerteza e instabilidade, resultando no câmbio excessivamente desvalorizado, em inflação e recessão. O governo não soube administrar a crise hídrica e de energia, recusando-se a agir preventivamente e negando a realidade evidente. Levou o país à beira do colapso do sistema, do apagão.

Bolsonaro e seu indigitado ex-ministro Ricardo Salles, desmontaram o ministério do Meio Ambiente e abriram a porteira para desmatadores, grileiros e garimpeiros agirem livremente, incentivando a destruição da Amazônia e do Cerrado, incluindo-se o pantanal que faz fronteira entre os dois biomas. Não bastasse tudo isso, cogita de desproteger o que resta de Mata Atlântica. Com seu negacionismo climático, tirou o país da liderança na discussão da política global do clima e da proteção da biodiversidade. Anulou a política indigenista e desmontou a Funai, abandonando a política de proteção das populações indígenas, expondo-as ao risco de extinção.

Quase destroi a diplomacia brasileira profissional, das mais respeitadas do mundo. A trôpega política externa do ex-ministro Ernesto Araújo, com pleno apoio de Bolsonaro, depreciou o papel do Brasil como potência média, potência florestal e nação que conquistou a liderança como um soft power, sem poderio econômico e militar, mas com riqueza natural valiosa, influência político-cultural e liderança pelo prestígio e competência da diplomacia profissonal na solução de impasses.

Bolsonaro transformou o sistema cultural em uma máquina de destruição da cultura, obscuranstismo, propagação de racismo, perseguição política, paralisando a produção cultural. O setor passou a fazer censura ideológica abertamente. A Fundação Palmares adotou política negacionista em relação ao racismo e passou a perseguir personagens notáveis da cultura e do movimento negro. O uso de um negro racista para executar essa política adicionou uma dose bruta de crueldade ao processo.

Na política, Bolsonaro recusou a lógica necessidade de uma coalizão. Apesar de quase 30 anos de mandato parlamentar, cometeu o erro primário de imaginar que poderia governar com o apoio das bancadas evangélica, ruralista e da bala. Fracassou como esperado. Ao longo dessa trajetória de fracassos, criou conflitos paralisantes com o Legislativo. Ameaçado de processos na justiça, buscou uma coalizão tardiamente, encontrando apoio no centrão. Sua coalizão, porém, é minoritária e instável. Ao longo desses mil dias confrontou os poderes Legislativo e Judiciário, promoveu manifestações de rua contra os poderes da República, em favor do golpe militar e de atos de exceção como o famigerado AI-5. A postura de Bolsonaro tem sido sistematicamente golpista e de afrontou à Constituição. Ele ameaçou intervir no processo eleitoral, tentou deslegitimar o voto, as urnas eletrônicas e o TSE. Desde a posse, alimentou uma crise política, com sua atitude geral de confrontação e desrespeito.

Escrevo os verbos no passado, porque tratava dos últimos 1000 dias de desassossego, desgoverno e crise. Nada indica, todavia, que será melhor até o final do governo. Bolsonaro, em alusão aos 1000 dias de governo, disse que a crise econômica não foi culpa dele, mas da pandemia. Mas ao dizer isso, quer indicar que foi por causa da maneira como governadores e prefeitos enfrentaram a pandemia. Disse que não é contra a vacina, mas contra sua obrigatoriedade, porque defende a liberdade e há muita dúvida ainda sobre as vacinas. Em suma, comemorou os 1000 dias de desgoverno, que mais parecem cem anos de retrocesso, mentindo.