Ao ouvir o telefonema entre Bolsonaro e o senador Jorge Kajuru, me lembrei imediatamente da ligação de Trump para o secretário de Estado da Georgia, Brad Raffensperger, pedindo-lhe que lhe arranjasse pouco mais de 11 mil votos, para que ganhasse o estado. Era espantoso ver o presidente americano pressionando o secretário republicano para cometer fraude eleitoral. Mas, Raffensperger, embora republicano, não se curvou, nem fingiu concordar com Trump.
Pensei que, este tipo de jogo sujo houvesse ficado enterrado pelo Watergate e pelo impeachment de Nixon. Não estava. Pensei que fosse o auge do desmando. Não era. Trump ainda incitaria, diante da Casa Branca, supremacistas brancos, neonazistas e ultradireitistas a marcharem contra o Capitólio, sede do Congresso americano. Queria que o Congresso invalidasse uma eleição limpa e impedisse a posse de Biden, para que ele fosse empossado presidente. Surreal.
Um conluio entre os republicanos moderados e os que aderiram a Trump, livrou o ex-presidente americano do impeachment. Mas, ele está, até agora, no ostracismo, rejeitado pela maioria da opinião pública e parte do establishment industrial-militar do país, inclusive capitalistas que chegaram a apoiá-lo contra Hillary Clinton.
O telefonema entre Bolsonaro e o senador Kajuru contém mais crimes do que o de Trump para Raffensperger. É crime tentar impedir o livre curso de uma CPI. É crime de responsabilidade por quebra de decoro do cargo ofender e ameaçar fisicamente senadores da República. Foi o que Bolsonaro fez com o senador Randolfe Rodrigues, neste mesmo telefonema.
Aqui, como lá, um conluio até mais amplo blinda Bolsonaro de um pedido de abertura de processo contra ele pelo Ministério Público ao Supremo Tribunal Federal. O Procurador Geral da República encontrou meios de neutralizar a autonomia dos procuradores e só ele poderia encoaminhar um pedido de processo contra Bolsonaro ao STF. Se o PGR, que opera a serviço de Bolsonaro, se visse de alguma forma constrangido a apresentá-lo, ainda precisaria ter autorização da Câmara para que processo fosse iniciado. Eu não apostaria todas as minhas fichas na sua aprovação por dois terços dos deputados. Mas, a negativa custaria a Bolsonaro muito mais caro do que custou a Michel Temer.
A inércia das instituições que poderiam agir para reprimir os abusos de autoridade e crimes seriais de Bolsonaro é muito inquietante. Um sinal de sério debilitamento das instituições de freios e contrapesos essenciais à qualidade de nossa democracia.
Sobram razões para agir contra Bolsonaro. A situação da pandemia já é intolerável, inconcebível mesmo, há muito tempo. Eu diria que desde que ultrapassamos a marca de 500 mortes por dia. Outro marco dessa ultrapassagem de qualquer limite civilizado foram as mortes por falta de oxigênio em Manaus. Vamos esperar que situações como essa se espalhem pelo país? Pessoas morrendo por falta de oxigênio. Pacientes entubados amarrados em suas camas, como se fazia com os internados nos hospícios mediavalescos que o Brasil já teve, porque faltam os sedativos necessários para mantê-los inconscientes. Este é um quadro possível, ainda que impensável, no futuro próximo de centenas de cidades brasileiras, se a doença continuar a se agravar por falta de medidas eficazes para redução da transmissão do vírus e não se resolver a escassez de insumos para intubação.
Há pouca probabilidade de que a situação não se agrave mais. A vacinação está lenta e o ministro da Saúde não vê possibilidade de obter fluxo adequado para vacinar mais de um milhão de pessoas por dia, antes do segundo semestre. Parece que, pelos menos, há um ministro da Saúde mais sincero. Há, contudo, especialistas que duvidam da possibilidade de aceleração efetiva da vacinação, antes do final do ano. Portanto, ou há reação e se interrompe a irresponsabilidade das ações de Bolsonaro na presidência, ou sim, veremos esse quadro de aberrações inumanas se concretizar.